segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

São Paulo: alguma coisa acontece no meu coração

Realmente alguma coisa aconteceu no meu coração no dia que eu cruzei a Ipiranga com a Avenida São João. Não sei explicar o que aconteceu, mas aconteceu. Muita beleza no que dizem feiura, a dura poesia concreta das tuas esquinas me parece tão natural nas suas linhas. Imagino o quanto minha visão e descrição soam poéticas, mas alguma coisa acontece no meu coração a cada vez que volto pra cá.


Uma luz forte se acende. Abro os olhos. São 5:30 da manhã, ainda está escuro do lado de fora do ônibus. Em São Paulo depois de uma viagem de 6 horas desde Petrópolis. Me sinto acolhido, me sinto estranhamente bem e abro um sorriso. Caminho para a linha azul do metro, cabelo amassado, cara amarrotada, dançando a música que toca no meu fone de ouvido e sorrisão, devo estar parecendo um psicopatinha entrando no vagão da Linha azul. Gosto dessa possibilidade de parecer louco e ninguém ligar, me remete a quando morei em Nova Iorque.

Uma gorda moribunda dorme de boca e braguilha aberta, um riquinho com cara de Michél Teló raquítico, calça da Diesel e tênis Armani Jeans, uma morena bonita exageradamente maquiada, com uma aliança de 70 kg dourada e roupa de laboratório médico, um hipster com a barba até o joelho e camisa xadrez que parece estar voltando de uma noitada, dois bolivianos com toda a vestimenta Ralph Lauren toscamente falsificada falando espanhol. São muitas possibilidades, muitas histórias simultâneas. São Paulo é muito singular... E tão plural. Alguma coisa acontece no meu coração.

Acho incrível o número de experiências que você não vai viver, a quantidade de pessoas que não, você não vai conhecer. Existe poesia em se perceber um pixel em uma tela de 60" nessa miríade de humanos no trem num horário tão cedo como 5:20 da manhã, a mesma que existe ao andar pela Avenida Paulista na hora do rush.

Ser só um pontinho também tem seu revés, você é só mais um, todo mundo é só mais um, o morador de rua babando de boca aberta no asfalto quente é mais um. Nessa de sermos mais um, sinto que as vezes para muita gente que foi nascido, ou criado, ou só bem habituado com os serviços que, de fato são num geral excelentes aqui, falta a consciência de perceber que a garçonete que te atendeu mal, está só querendo ter um nome e existir,  o anexo é a mensagem de mal humor que ela te envia no atendimento meia boca. Ela demora duas horas todo dia de São Miguel até o restaurante que você saboreia sua deliciosa comida num restaurante de Pinheiros onde exige um serviço bom. O nome dela é Rosângela e ela tem 4 filhos. A cidade muito grande desumaniza, apesar de ser bom ser só mais um na multidão, você é só mais um na multidão. Sobreviver aqui não é fácil, é triste e duro muitas vezes, mas o fato é que mesmo assim alguma coisa acontece no meu coração.

Essa cidade que te impõem tão severamente seu ritmo e seus costumes que você nem se dá conta e você perde seu "puta carioquês daora" que estava "há uma cota" impregnado no seu sangue. Nessa correria é um puta "trampo" conseguir arrumar UMA hora na semana pra conversar com seu amigo e tomar uma "breja"(essa palavra eu não acho nada "daora"), porque vocês trabalham muito e moram levemente longe e a logística de deslocamento multiplicada pelo seu cansaço de um dia de trabalho intenso se tornam desproporcionalmente esmagadores á sua vontade de ver seu amigo.

A linha verde do metro, que é a que mais pego por ser perto de casa, está sempre florida e só o simples fato de ver beldades que desfilam inocentes, sem saber o encanto que causam, faz alguma coisinha acontecer no meu coração. Existe uma concentração gigantesca de mulheres lindas, legais, independentes, abertas a conversar e estilosas em São Paulo. Mas saiba que em São Paulo ser estiloso muitas vezes é NÃO ter tatuagem nem piercing. Ser diferente por fora não é necessariamente ser uma pessoa original, estilosa e de mente aberta. O excesso de estilo aqui me parece muitas vezes cultivar excentricidades para compensar a falta de personalidade, para ter mais destaque, se diferenciar e não ser só mais um destes pixels na tela. 

Os sacos de lixo daqui também são estilosos, de uma estampa esverdeada de imitação de folhas talvez para compensar a falta de verde natural. E o que falta de verde parece ser compensado com uma noção de coletividade bem maior que no Rio. Como gosto de repetir e aplicar a frase que li em Cabo Polonio: basura de nadie, basura de todos. Aqui já vi esse exemplo algumas vezes como quando dando uma volta de bike pela ciclovia da Paulista, passei por um garrafa de cerveja quebrada. Quando fui fazer a volta pra limpar, já tinha duas pessoas fazendo isso... Alguma coisa acontece no meu coração.

Por outro lado percebo que as pessoas são meio policinhas do comportamento alheio. Outro dia uma embalagem caiu da minha mochila e eu não percebi. Uma senhorinha já veio super agressiva me dando um esporro. De certa forma é legal essa atitude, salvo a falta de cordialidade. O que não gosto é que muitas vezes a razão parece mais ser um controle do outro com pitadas de egoísmo, numa coisa do tipo "não faça isso seu porco, a cidade é minha!" misturado com uma espécie de medo apocalíptico que se instaure o caos. É mais bonito quando é só noção que estamos todos conectados aqui agregado a um amor e cuidado genuíno com a cidade. Ainda assim, alguma coisa acontece no meu coração.

Aqui existem regras de bom comportamento. Algumas regras que servem para ordenar e tornar menos caótica a interação dessa tsunami de pessoas acabam ficando contraproducentes. Por exemplo, acho saudável que o bom dia/tarde/noite daqui é muito mais fácil, recorrente e natural. Só que outro dia entrei no taxi distraído conversando com um amigo e já dizendo o endereço que iria. O taxista com muito sangue nos olhos me disse agressivamente: "Boa noite pra você também antes de mais nada!" Então o objetivo da saudação cordial se perde, fica vazio, porque as pessoas passam a usá-lo não como uma forma de desejar algo de bom pra um outro ser humano, mas como uma fala automatizada, uma forma de coerção social, uma espécie de humilhação dos bons modos, do tipo, "olha só seu carioca folgado sem educação idiota, quando se entra no taxi se usa boa noite." Vira um processo paradoxal que me causa estranhamento e alguma coisa estranha no meu coração.

Aqui existem filas, muitas filas. Tenho sempre a impressão que nem se sabe pra que é, mas muitos entram numa mescla de positiva e saudável organização espontânea com uma pitada de espírito de gado burro. O lado excelente é que tudo é mais organizado, mas a maioria usa tão instintiva e automaticamente ao ponto de não se darem conta que as vezes fazer uma fila pode não ser a forma mais ágil e produtiva. Como outro dia que estava numa comida a quilo. Eu só queria salada, que era o primeiro item do buffet.  Peguei e fui pro caixa. Um homem achou ruim, achou que eu estava furando e que eu deveria esperar numa fila de quilômetros mesmo sabendo que não tinha mais nada ali que eu quisesse, porque fila é fila mesmo quando ela é contraproducente.

São Paulo está longe da perfeição, é uma versão maior e piorada de Nova Iorque. Tenho uma relação de amor e ódio com São Paulo. Tenho dias que odeio morar aqui, mas muitos são esses dias que essa mistura de sentimentos, pessoas, pensamentos, visões e vidas tanto me encanta. Amar de verdade requer ver também as falhas e os defeitos e ainda assim escolher. Ontem andando de bike pela Paulista fechada e cheia de gente, eu sorri e percebi que aprendi a amar essa cidade.




Não esqueço de um dos pores do sol mais lindos da minha vida, um sol gigante, redondo e laranja como eu nunca tinha visto antes. Dizem que os cariocas são exagerados, ok. Mas não, esse por do sol não foi no Arpoador, foi por trás de vários prédios no horizonte de uma parte alta do bairro do Sumaré onde eu moro. Eu, um carioca apaixonado pelo Rio não sei porque ninguém bateu palmas pra esse por do sol. É, definitivamente alguma coisa acontece no meu coração.