segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O luto de um suicídio

É quase impossível que no decorrer de sua vida você não tenha que vivenciar o luto por alguém que morreu. Vivo o luto do suicídio do meu irmão, que se matou há pouco mais de um mês atrás aos 35 anos. Expor minha história mais uma vez é uma forma de transformar minha vivência desse luto em aprendizado pra mim,  e espero talvez, que de alguma forma ajude quem quer que tenha passado ou passe por isso.

Nesse um mês recebi centenas de mensagens que envolviam casos de suicídio, ou de próprias pessoas que tentaram se matar. Muitas contando histórias, fazendo perguntas, agradecendo, falando dos próprios sentimentos. Tive muitas reflexões a partir de toda essa experiência.

A primeira é que falar sobre suicídio é particularmente desafiador não só pelo trauma e pela grande surpresa, mas também pelo grande tabu que envolve o tema. Parece que, semelhante a tantas outras situações de vulnerabilidade psicológica para as quais preferimos olhar apenas em secreto, manter o silêncio funciona somente como mais uma máscara que visa esconder uma realidade de profunda dor, misturada com sentimentos de vergonha e estigma social. Não quebrar esse tabu evitando tocar no assunto em nada ajuda, pelo contrário só torna tudo muito mais difícil.

No meu texto anterior falei da depressão, uma doença grave que culmina naturalmente no suicídio quando não levada a sério e tratada. No entanto, existem vários porquês possíveis para uma pessoa se matar, mas esse não é o ponto. O ponto é que vale perguntar o quanto quisermos,  falar até a exaustão, investigar e tentar entender se acharmos necessário, mas é burrice se entristecer ou ficar irritado e frustrado por não encontrar respostas satisfatórias, ou não encontrar resposta alguma como ocorre tantas vezes. Te deixaria mais feliz se encontrasse uma carta da pessoa e soubesse que ele se matou porque estava cansada de ver sua cara? Ou porque ela estava com uma dívida secreta enorme? Os porquês mais íntimos são quase sempre impossíveis de saber e eles não trarão a pessoa de volta nem preencherão a ausência. Buscar porquês é uma espécie de auto-flagelação, é quase sempre tentar se enganar e imaginar que poderia ter percebido mudanças ou feito algo para evitar o suicídio.


Ouvindo vários relatos e conversando com especialistas ficou evidente: as mudanças são muito sutis e até médicos especializados nesse campo tem dificuldade de diagnosticar mudanças de comportamento que precedem o suicídio. E pra dificultar, a maioria das pessoas que decidem se matar, raramente o fazem num impulso, muitas planejam quando, o método e o local e fazem de tudo para disfarçar pois sabem que as pessoas que as rodeiam tentariam impedir.
Dentre alguns casos, ouvi um de uma pessoa que se matou a caminho de ser internada em uma clínica para tratar da depressão. Falou que ia em casa pegar uma roupa rapidinho e se enforcou. Num outro caso, o homem falou que ia viajar, arrumou a mala, e no primeiro momento que pode ficar sozinho se enforcou no suporte da Tv no quarto do casal com a esposa esperando na cozinha. Uma outra, já em tratamento e com a família de olho, falou que ia ao banheiro, se trancou e deu um tiro na cabeça. Mesmo assim, é extremamente recorrente se iludir e se causar sofrimento pensando que poderia ter feito algo. Não poderia. Afinal, se você realmente acreditasse que alguém que você conhece planejava se matar, você deixaria? E voce sabia e acreditava de fato que a pessoa era capaz de se suicidar antes do ocorrido?
O luto de um suicídio parece que dói mais que uma morte "natural",  porque uma outra tendência recorrente é imaginar que foi um coisa contra voce, em outras palavras, como se a sua existência ou de outras pessoas importantes não fizessem diferença pra quem se matou querer continuar viva. Uma interpretação equivocada, porque no caso de depressão profunda o estado de sofrimento e falta de vontade de viver são tão grandes que engolem qualquer outra vontade. Não tem nada a ver com o outro, é um sentimento solipsista, mas não egoísta porque não tem ego, é como uma ausência muito grande, não tem um eu que se conecta com nada, ganhar na loteria ou pegar sua mulher na cama com outro é indiferente, é um vazio avassalador. É bem difícil pra quem não sofre de depressão e tem a mente sadia conseguir vislumbrar o que alguém que se matou sentiu.
Bem mais intensamente que nas mortes "naturais" o suicídio pode causar muito sofrimento a todos remotamente conectados ao suicida pelos fatores que mencionei. Ajuda a dar mais leveza pesquisar sobre o tema, quebrar o tabu, escrever, ler sobre, entender que há muitas visões diferentes em diversas culturas (e até só na nossa mesmo) sobre a morte e o suicídio. Só pra citar uma rapidamente, aprendi que em algumas "tribos" da Malasia o suicídio é prática admirada. Os suicidas são chamados de heróis, pela coragem, são considerados escolhidos. Eles dizem que a atitude de sacrifício deles traz mais união, amor e vida para a tribo.
Também pode ajudar a se sentir melhor conhecer pessoas que passaram por isso,  relembrar que você não é o único a viver essa situação e uma forma boa de atenuar um sentimento muito recorrente de enorme solidão que costuma surgir em quem perde alguém assim. Digo "pode ser que " e "talvez" porque esse é o ponto central de um luto: cada um tem a sua forma de sentir e lidar com a ausência.
A morte antes de assustadora ou incompreensível, significa a ausência física que a pessoa que se vai bruscamente deixa, é impreenchível, porque só aquela pessoa com todas as suas idiossincrasias , mesmo as ruins, pode ocupar aquele lugar. No ato de existir, todos somos insubstituíveis. Diante da aceitação deste fato, a nossa mente nos leva a vários destinos.
Alguns caminhos mentais são mais tortuosos, outros mais fáceis. Parece bem fácil morrer junto, mesmo sem se matar, mas a real é a mesma de quem decidiu se matar: você é quem escolhe. A gente só não tem escolha diante do nosso livre-arbítrio de ter que escolher como lidamos com a ausência da pessoa. A dor e o sofrimento que vem de uma perda podem ser grandes vilões que destroem nossa vida... Ou grandes professores que te fazem ter mais recurso e força para lidar com as durezas da vida. O que você escolhe?
A saudade é inevitável, é um sentimento curioso e inerente ao luto, mas ela pode ser vivida com alegria, ou com dor, é um ponto de vista sobre o passado. Você pode ver como algo positivo: que bom que eu vivi esse momento com essa pessoas pra poder sentir saudade. Ou como algo horrível: que merda que nunca mais vou viver isso com essa pessoa. É sempre um gatilho, uma faísca que pode ser uma situação, objeto, palavra, som, cheiro que te faz lembrar a pessoa que não está ali. A gente chora e sofre mais pelo apego as memórias que vivemos com quem se foi, do que pela pessoa em si. Por outro lado, a dor pela certeza de um futuro que não virá diante desta ausência é só uma ilusão, um caminho mental que só causa dor. Só que o fato da pessoa estar morta ou viva não faz essa vivência ou lembrança menos ou mais vívida, e nem existem garantias que esse futuro chegaria. Fato: a saudade nunca é nossa mente no presente.
O que não nos mata nos fortalece, e o kanji de crise = perigo + oportunidade, assim, penso nessa experiência de luto como uma grande oportunidade de onde podemos sair mais fortes e mais vivos. Uma oportunidade de sorrir de novo, um sorriso que demora a vir, mas que quando vem, vem com força redobrada.












Muitas pessoas, com boas intenções aparentemente, te dizem como você tem que se sentir. Alguns te dizem pra esquecer, outros te dizem que você tem que seguir em frente, outros te dizem que você tem que sofrer, mas pouquíssimos tem a sabedoria de te dizer o mais correto: você nao "tem que" nada. Em especial se você está bem, algumas pessoas te cobram ter que sofrer. 

Me lembra a história do Estrangeiro do Camus, o protagonista é julgado culpado de um crime porque não chorou no velório da mãe. Se sua vida não está acabada porque seu irmão se matou então você não gostava dele de verdade. Se voce já está conseguindo sorrir é porque a ficha não caiu. Algumas pessoas que vivenciaram situações parecidas te dizem "ah voce ainda vai sofrer muito até os dois, três primeiros anos." Entendo que é quase que um conselho, como para que você esteja preparado, mas é totalmente sem sentido. A partir de que dia exatamente que o sofrimento acaba e é adequado poder sorrir? Quais as demonstrações de sofrimento que temos que dar para que a dor seja verdadeira e "correta"? É quase dizer: olha, esse luto pelo irmão que se matou dura no mínimo 2 anos, 3 meses, 17 dias e 12 horas, e você tem que chorar 17 litros, tá bom?

As pessoas cobram, e até a gente mesmo se cobra sofrer se não prestar atenção. Só que o sofrimento não beneficia nem glorifica ninguem, nem o morto nem nós mesmos. Independente de sua fé ou falta dela, existe alguma possibilidade da alma de quem se foi se sentir feliz, orgulhosa e honrada pelo fato de você estar na lama e miseravelmente triste? 

Se tivesse que dizer a única coisa que alguem "tem que" nesses momentos é: "temos que" sentir. Vivenciar o luto e, como todos os sentimentos, ele está sujeito às idiossincrasias de indivíduos singulares que todos somos. Não tem receita, nem certo e errado. Pode ser que voce sinta raiva, ódio, saudade, compaixao, vazio, tristeza, amor, perplexidade... Pode ser que sinta por uma semana, por 10 anos, ou pra sempre até morrer. Nesse pouco mais de um mês eu senti isso tudo e muitos outros lugares em mim mesmo que nem sei descrever.




Por último, uma das grandes dificuldades de passar por um luto deste tipo é que custamos a perceber, e depois relutamos a aceitar: o luto por nós mesmo. Mudanças tão bruscas como essas nos tornam outras pessoas, o eu antigo morre. E o não reconhecimento desse novo eu, pode ser no mínimo estranho, senão muito doloroso. Você pode sair mais forte, pode sair derrotado, pode sair revoltado, enfim, o fato é: não tem como entrar e sair neutro de um luto.

Finalmente, tenho que dizer  que é verdade, não há muito o que alguém possa dizer para consolar em momentos como esse, mas se disser conta comigo, não diga de forma piegas e leviana, porque nesse momento de fragilidade é muito mais decepcionante alguém te falar isso e quando voce pede ajuda a pessoa não comparece. Nos dias de luto que fraquejamos, a gente não precisa de textos e palavras lindas, nem de alguém que nos diga como a gente deve se sentir, a gente só precisa saber: conta comigo, estou aqui.





Nenhum comentário:

Postar um comentário