quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A ditadura as avessas dos oprimidos

Muitas situações polêmicas que envolvem minorias me fizeram refletir muito recentemente. Em especial teve diversos textos (antigos e mais recentes) sobre a questão das marchinhas de carnaval no Rio, e a última, e que mais me impactou, foi quando o li este texto através do qual soube da história da jovem com câncer que foi acusada de apropriação cultural ao usar um turbante. Todas estas situações permeiam uma questão que vi ser usada diversas vezes em debates sobre estas polêmicas: lugar de fala.

Lugar de fala é uma expressão que aparece recorrentemente em temas que envolvem militantes de movimentos feministas, negros, LGBT e em discussões na internet, como contraponto á falta de voz destas minorias sociais em espaços de debate público e é utilizada por grupos oprimidos que historicamente têm menos espaço para falar. Lugar de fala é a busca pelo fim da mediação: a pessoa que sofre preconceito fala por si, como protagonista da própria luta. Ou seja, negros têm o lugar de fala, a legitimidade, para falar sobre o racismo, mulheres sobre o feminismo, transexuais sobre a transfobia, e assim por diante.

Apesar do conceito em sua essência ser extremamente positivo, o alastramento, a popularização e o uso distorcido do lugar de fala gera muitos efeitos paradoxais e negativos como este print do twitter abaixo, de uma conta (que parecia real, sofreu diversos ataques e hoje fui ver está desativada) de alguém que parecia ser uma militante feminista negra criticando a menina com câncer que usou um turbante. 


Um primeiro efeito paradoxal do uso distorcido do conceito de lugar de fala é reforçar os argumentos "ad hominem"Há algum tempo atrás fui atacado quando argumentei em um texto sobre uma posição de militância feminista que achei extremista e incoerente. Diversas mulheres me massacraram e desqualificaram meus argumentos, não pelo teor destes, mas pelo simples fato de eu ser homem. Em um paralelo, é tão absurdo como um militante de extrema direita defensor do Trump desqualificar minha argumentação contrária aos decretos anti-imigratórios do Sr. Presidente porque não sou estadunidense. E um fator agravante é que estes argumentum ad hominen usados contra mim neste contexto são reproduzidos não só na pauta do feminismo, mas num debate entre uma feminista negra desqualificando uma feminista branca, um transexual atacando um homosexual. Como bem disse Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, se um movimento social desqualifica argumentos que não são enunciados pelos próprios oprimidos, simplesmente por não serem enunciados por oprimidos e não pelo seu teor, de certa maneira ele resgata e legitima uma modalidade de argumento ad hominem.

Este tiroteio ideológico desqualificatório em diferentes círculos de militância, que diga-se de passagem só fortalece a extrema direita,  é usado tantas vezes para blindar a crença que lugar de fala é uma forma de superioridade gnosiológica das pessoas pertencentes a um determinado grupo oprimido, como se estes tivessem uma espécie de acesso privilegiado à verdade, pela sua identidade ou pertencimento a estes grupos. O conhecimento pragmático, o contato direto com uma realidade, são apenas duas formas de conhecimento e reflexão sobre ela, mas não são as únicas e nem são hierarquicamente superiores às outras.

É evidente que
 as pessoas não falam do mesmo lugar social e não possuem as mesmas relações com as estruturas de opressão. É certo que os grupos oprimidos devem ter participação ativa e protagonismo nas formas de falar, saber e poder sobre sua própria condição. No entanto, não é saudável se passarmos de um monólogo ditatorial do macho alfa branco, para uma ditadura as avessas dos oprimidos, onde só pode opinar e debater quem pertence aos grupos que até então tinham menos ou nenhuma voz.  A supressão do debate só gera ressentimento e empobrecimento da argumentação, é preciso ter cuidado, a virtude está no meio.

Os abusos e distorções deste conceito de “lugar de fala”,  têm levado ao que definiu  Renan Quinalha, advogado ativista de direitos humanos, doutorando de Relações Internacionais e colunista da revista Cult: "uma lógica problemática de privatização das pautas em uma armadilha identitária". 
Há uma afirmação do lugar de fala de pessoas pertencentes a grupos oprimidos como os únicos legítimos e aptos a discutir problemas que afetam todos nós. O resultado é que este posicionamento que tem forte viés anti-democrático, onipotente e onisciente sobre estas pautas, acaba alienando e gerando resistência ainda maior em alguns grupos privilegiados, fazendo que mesmo em discursos legítimos, pertinentes e coerentes, só se veja"mimimi" Medidas extremas de esquerda, são prato cheio para extremismo de direita e vitórias de Trumps.

No sentido de construção cultural e histórica, a identidade é um fator fundamental de autoconsciência, de pertencimento, de auto-estima, de solidariedade de grupo e crucial para a ação política dos oprimidos. Contudo, não é nada saudável o que tem se transformado em uma espécie de enfatização desta condição, um uso cada vez mais frequente da identidade como objeto de fetiche, de propriedade inalienável, ao invés de ser vista como um rótulo com data de validade, para irmos além da lógica de segregação. Antes de negros, brancos, machos, fêmeas, gays e héteros, porque não enfatizar cada vez mais o fato que somos todos seres humanos? 

É importante ressaltar que não pretendo confundir representação com lugar de falar. Um hétero por exemplo jamais pode representar um gay, mas do lugar de fala pelo qual este hétero vê o mundo, é perfeitamente possível que ele assuma a questão relacionada a este tipo de discriminação eticamente. Não se pode negar a existência de "lugar de fala”, entretanto, novamente citando Quinalha, "deve-se frisar que lugares de fala é expressão que se pronuncia sempre no plural". Vamos lembrar que opressor e oprimido não esgotam a enorme pluralidade das relações humanas e sempre refletir que q
uem só conhece seu próprio lado do caso pouco sabe sobre ele.


Um comentário:

  1. Deixar o irmão morrer para tomar o seu lugar e deixar de ser totalmente vagabundo. Isso é baixo até para um merda igual a você.

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